terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Um diálogo vital entre o poeta e Antônio Carlos Viana


Publicado originalmente pelo site da Folha, em 20/11/2016.

Um diálogo vital entre o poeta e Antônio Carlos Viana.
Por Paulo Henriques Britto*

Poeta e escritor, o autor rememora sua amizade com Antônio Carlos Viana e comenta a obra do sergipano, que morreu em 16 de outubro. Doutor em literatura pela Universidade de Nice, Viana dedicou-se ao conto, tendo publicado coletâneas do gênero pela Companhia das Letras, como a elogiada "Cine Privê" (2009).

Quando conheci Antônio Carlos Viana, eu tinha 17 anos, ele, 24. Sergipano havia pouco tempo no Rio, Antônio lecionava português numa escola particular da Tijuca, onde eu cursava a segunda série do colegial. Seu método de ensino era nos fazer ler literatura: foi com ele que descobri Graciliano Ramos e Clarice Lispector.

Convivemos na mesma cidade por menos de um ano, mas nos tornamos amigos para o resto da vida. Logo ele se mudou para Teresópolis, e pouco depois publicou seu primeiro livro de contos, "Brincar de Manja". Nessa obra de estreia já se percebiam alguns elementos que estariam presentes ao longo de toda a sua trajetória: as contingências do corpo no sexo e na morte, a ignorância e vulnerabilidade da infância.

Havia também um toque de fantasia que refletia as suas leituras da época: José J. Veiga, García Márquez e Cortázar. Após alguns anos em Teresópolis, Antônio foi estudar no Rio Grande do Sul; eu fui para a Califórnia, e nossa amizade passou a depender dos correios, depois substituídos pela internet.

Embora tivesse viajado para estudar cinema, eu dedicava a maior parte do meu tempo no estrangeiro a escrever contos –em inglês, já que pensava seriamente em não voltar mais para o Brasil, então vivendo o pior período da ditadura. Menos de dois anos depois, porém, já estava de regresso ao Rio, trabalhando como professor de inglês e reescrevendo em português o que eu havia produzido na Califórnia.

Antônio tornou-se então meu consultor literário mais importante: eu lhe enviava versão após versão de meus contos. Sabia que ele tinha ouvido absoluto para clichês, impropriedades verbais, incoerências na fala de personagens; sabia também que ele me diria exatamente o que pensava dos meus escritos.

Em 1981, Antônio publicou seu segundo livro, "Em Pleno Castigo". Sua prosa estava ainda mais depurada e seca; a temática fantástica fora atenuada, e o foco era nas personagens que se tornariam fundamentais em seu trabalho. De um lado, crianças e adolescentes tentando entender as forças misteriosas que impelem seus corpos; de outro, pessoas mais velhas, principalmente mulheres, solitárias, isoladas ou marginalizadas, esforçando-se para sobreviver com um mínimo de dignidade.

A voz do narrador, em primeira ou em terceira pessoa, mantinha um equilíbrio delicado entre objetividade absoluta e empatia, entre crueldade e humor sutilíssimo.

Em 1986, fiquei 40 dias hospedado na Cité Universitaire, em Paris, onde Antônio estava morando com a mulher e o filho, trabalhando numa tese de doutorado sobre a poesia de João Cabral. Nessa minha estada, tínhamos longas conversas sobre tudo, inclusive Cabral. Lembro-me da crítica severa que ele fez a alguns dos poemas do meu primeiro livro, publicado anos antes.

Embora não tivesse usado o termo, estava claro que, para Antônio, neles eu cometera o pior dos pecados literários: o sentimentalismo. Se Cabral já era meu superego poético, a crítica de Antônio reforçou-o ainda mais nesse papel.

De Paris, Antônio voltou para Aracaju, onde moraria pelo resto da vida, trabalhando na universidade, traduzindo e escrevendo. Continuava a ler e criticar meus contos, e também me mandava os que ele ia escrevendo, num ritmo para mim inimaginável: seu terceiro livro saiu em 1993. Nessa década, estivemos juntos duas vezes, em eventos acadêmicos em Aracaju para os quais ele convidou a mim e a minha mulher, Santuza Cambraia Naves.

Numa dessas idas a Sergipe, encontramos Antônio em pé de guerra com boa parte da comunidade literária local. Uma proposta de lei estadual obrigaria as escolas a apresentar aos alunos a "literatura sergipana" antes da brasileira; Antônio argumentava que não existia "literatura sergipana", e sim autores de literatura brasileira que haviam nascido em Sergipe, o que não era a mesma coisa. O provincianismo era uma das poucas coisas que o tiravam do sério.

NADINHA

Embora já tivesse conquistado vários prêmios literários, até então Antônio era publicado por editoras pequenas, que não proporcionavam a seus livros uma distribuição decente. Quando, em 1999, a Companhia das Letras me pediu para fazer uma seleção de suas três obras até ali, aceitei a incumbência com entusiasmo, sabendo que daquela vez Antônio teria um público maior. "O Meio do Mundo e Outros Contos" incluía também uns poucos textos ainda não reunidos em livro, como "Nadinha", uma pequena obra-prima de concisão radical.

Em 2004, finalmente publiquei meu primeiro livro de contos, dos quais apenas dois não remontavam aos anos 1970; dediquei-o a Santuza e a Antônio, meus leitores de primeira hora. No mesmo ano, Antônio lançou "Aberto Está o Inferno", que começava por "Ana Frágua", quatro páginas em que um dos temas prediletos do autor, a perda da inocência infantil, é abordado com um extraordinário misto de crueza e delicadeza.

Os contos estavam ainda mais curtos; um deles, "Inveja", tinha apenas 14 linhas. Cinco anos depois, Antônio lançou "Cine Privê", retribuindo a dedicatória que eu lhe havia feito. Embora ali a infância continuasse presente, suas narrativas agora tematizavam cada vez mais a velhice, como indicam alguns dos títulos: "O Terceiro Velho da Noite", "A Velhice Chega de Mansinho" e "Minha Avó Inocência".

Em 2013, eu e Antônio fomos à Alemanha participar da Feira de Frankfurt; pela primeira vez em muitos anos –fora um rápido encontro anterior em Paraty–, pudemos conversar. Aliás, o que mais fiz nessa viagem foi conversar com Antônio, no quarto do hotel, tomando o vinho que comprávamos na loja de conveniência do posto de gasolina.

Depois passamos mais de um ano sem nos vermos, eu lhe mandando versões sucessivas dos contos que estava aprontando para um segundo livro, ele de início resmungando que não escrevia mais nada, por não ter mais o que dizer. Resolvi incentivá-lo a retomar umas histórias que havia abandonado, e com minha insistência ele acabou tomando gosto e terminando um número de textos suficiente para um novo livro.

Um dos contos, que daria título ao volume – "Jeito de Matar Lagartas"–, era um dos melhores que ele já havia escrito; em outro, "Um Traidor", Antônio retomava o tema da solidão na velhice com um humor irresistível.

Depois de um período de um mês ou dois sem nos escrevermos, no final de 2014 recebi um e-mail de conhecida minha e de Antônio dizendo que ele estava morrendo de câncer. A notícia me deixou atônito, porque ele nunca havia me falado de doença. Liguei para seus familiares e soube que o mal estava avançado, com pouca esperança de cura, mas que se estava tentando um tratamento de risco.

Comprei uma passagem para Aracaju para janeiro, quando eu já estaria de férias na universidade, sem ter certeza de que ainda o encontraria com vida. Nesse ínterim, a Companhia das Letras me pediu uma orelha para o novo livro de Antônio em caráter de urgência; eles fariam tudo para que o livro saísse enquanto ele ainda estivesse vivo.

Em janeiro de 2015, encontrei Antônio ainda muito debilitado, recuperando-se de um tratamento brutal, mas que funcionou por algum tempo. Passamos alguns dias conversando, como em Frankfurt; mas a literatura não era mais nosso tema principal. Só então fiquei sabendo das idas e vindas da doença, dos tratamentos mais e menos acertados, coisas a respeito das quais, movido por sei lá que sentimento de pudor, ele nunca me dissera nada.

Pouco depois de voltar ao Rio, recebi meu exemplar autografado do novo livro, e nossa correspondência retomou o ritmo de sempre. Quase três meses atrás, mandei-lhe o rascunho de um conto novo, sobre cuja viabilidade eu tinha (e ainda tenho) sérias dúvidas. Ele me respondeu dizendo que não poderia ler no momento, por estar se recuperando de uma nova cirurgia. Pouco mais de um mês depois, sucumbiu a uma anemia causada pelo câncer.

Depois fiquei sabendo que Antônio, perfeccionista como sempre, antes de ir para o hospital pela última vez apagou do disco rígido de seu computador os rascunhos dos contos que não tivera tempo de terminar.

* Paulo Henriques Britto, 64, é poeta, tradutor e professor do departamento de letras da PUC-Rio.

Texto reproduzidos do site: folha.uol.com.br

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