quarta-feira, 22 de março de 2017

O naufrágio do Araraquara

Navio Araraquara.

Publicado originalmente no site da Folha de S. Paulo, em 08/07/2007.

O naufrágio do Araraquara.

Relato do oficial da Marinha Mercante Milton Fernandes da Silva descreve o torpedeamento, o afundamento e a luta pela sobrevivência no mar de 4 náufragos do Araraquara; dos 142 a bordo,131 morreram.

Por Sérgio Torres*

Escrito há 65 anos pelo oficial da Marinha Mercante Milton Fernandes da Silva, texto até agora inédito relata o torpedeamento, o afundamento e a luta pela sobrevivência no mar de quatro náufragos do navio brasileiro Araraquara, atacado por um submarino alemão na costa de Sergipe na noite de 15 de agosto de 1942.

Havia a bordo, oficialmente, 142 pessoas. Só 11 sobreviveram, entre elas Silva, o único oficial que conseguiu alcançar a terra. Ele era o primeiro piloto, terceiro homem na hierarquia de comando da embarcação.

Os naufrágios do Araraquara e de seis outros barcos brasileiros entre 15 e 19 de agosto daquele ano, no litoral sergipano e da Bahia, resultaram em intensa comoção popular e pressão sobre o presidente Getulio Vargas (1883-1954).

Houve 468 mortos, pelo menos. Nas ruas, nos jornais e nas rádios de todo o país se exigia um posicionamento duro do governo. Em 31 de agosto, Getulio declarou guerra à Alemanha, à Itália e ao Japão.

O relato de Silva permaneceu engavetado do dia em que o escreveu, 15 de setembro de 1942, já de volta ao Rio, a pouco antes de sua morte, em 1994, aos 78 anos. Adoentado, ele xerocou o relatório de quatro páginas datilografadas, recortes de jornais da época e papéis sobre o caso.

Fez quatro dossiês e os entregou às filhas, Vera, Lúcia e Altair Maria, e ao filho, João Luiz.

É um documento rico em informações e sem sentimentalismos. Aos 27 anos, o primeiro piloto relata o momento em que o Araraquara foi atingido duas vezes por torpedos de um submarino (mais tarde identificado como o U-507, da Marinha alemã), o tumulto a bordo, as pessoas atirando-se à água, o naufrágio. Conta como conseguiu agarrar-se a tábuas e como resgatou três sobreviventes.

O oficial descreve o que se passou durante os dois dias em que flutuou no mar. Como dois náufragos se desesperaram e morreram afogados. Como ocorreu a chegada à terra, a nado, já que as tábuas foram destruídas pelas ondas.

E, ainda, a caminhada da praia aonde chegaram até o socorro em uma fazenda. Por fim, narra o atendimento hospitalar e a volta ao Rio, onde morava.

Navio misto (passageiros e carga) da empresa Lloyd Nacional, o Araraquara zarpou do Rio em 11 de agosto, rumo a Cabedelo (PB), com escalas em Salvador, Maceió e Recife. Cronologicamente, assim começa o relato do primeiro piloto.

Segundo ele, havia a bordo 177 pessoas (81 tripulantes e 96 passageiros). A informação diverge do divulgado pelo governo à época, de que o navio carregava 142 pessoas. Erro que pode ter sido premeditado, na tentativa governamental de reduzir o impacto da tragédia. Os números oficiais foram divulgados pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), criado três anos antes para censurar a imprensa e que, conforme historiadores, manipulava o noticiário.

"Estampido seco".

O texto relata que às 21h do dia 15, perto de Aracaju, "com o clarão da mesma à vista", o Araraquara foi atingido pelo primeiro torpedo. "Eu dormia no meu camarote quando fui despertado por um estampido seco, seguido de estremecimento do navio", contou ele. O segundo torpedo pegou o navio "aproximadamente um minuto" depois.

"Ordenei então aos passageiros, que estavam desorientados, que fossem para o outro bordo, e procurassem salvar-se da melhor maneira possível", escreveu a respeito da inclinação do navio, do sumiço dos botes e do iminente afundamento.

O oficial passa então a narrar o que fez para salvar-se. Primeiramente, atirou-se ao mar, "certo de que seria impossível" sobreviver. A seguir, nadou "auxiliado pelos vagalhões". Depois, assistiu ao naufrágio, com o Araraquara "ficando completamente em pé e desaparecendo".

Silva relata ter sido puxado pelo vácuo da embarcação indo ao fundo, mas que, mesmo bebendo bastante água salgada misturada a óleo e recebendo pancadas de destroços, conseguiu voltar à tona, onde se segurou a um pedaço de madeira que boiava.

Sobre a madeira, ele recolheu o maquinista Erothildes Bruno de Barros, 31, o moço de convés Esmerino Elias Siqueira e o passageiro Oswaldo Costa, tenente do Exército. Ao redor, apanhou destroços que boiavam, amarrando-os para que formassem uma espécie de jangada improvisada. Ele conta que o mar "os aproximava cada vez mais para a terra" e que assim se passaram a noite do dia 15 e todo o dia 16.

"Aproximadamente às 2h do dia 17 o marinheiro [Siqueira] começou a dar sinais de perturbação mental, pedindo alimento, dizendo ter ouvido bater a campainha para o café. (...) Em seguida, desesperado de fome e sede, atirou-se ao mar, sendo impossível qualquer salvação."

O tenente foi o próximo "a demonstrar o mesmo sintoma". "Tentei acalmá-lo, foi impossível, atirou-se n"água. (...) Agarrei-o pelas botas, conseguindo colocá-lo novamente sobre as mesmas [as tábuas]. No entanto, poucos minutos depois, colocando-se numa posição agressiva, dizendo que eu e meu companheiro estávamos embriagados, (...) fez-se novamente ao mar, sendo, desta vez, impossível salvá-lo."

O mar levava os náufragos para a praia até que, "ao clarear do dia", as tábuas foram destruídas pela arrebentação em bancos de areia. Silva e Barros caíram na água e passaram a nadar. Às 9h, atingiram uma coroa de pedras.

"Calculando que na preamar [maré alta] talvez não desse pé na dita coroa, e que estávamos fracos, pois havia 36 horas que não dormíamos nem nos alimentávamos, convenci meu companheiro de que não devíamos descansar e sim nadar para a terra, da qual já avistávamos os coqueiros."

Eles alcançaram a praia de Estância (cidade vizinha a Aracaju) às 15h. "Exausto, deitei-me na areia para dormir, julgando ter meu companheiro feito o mesmo, quando fui acordado para beber água do coco verde que ele havia apanhado."

Reanimados, puseram-se a andar, sendo abrigados na fazenda da Barra, após uma caminhada que Fernandes da Silva estimou em 2,5 léguas (cerca de 16,5 km). De lá, foram levados para a cidade de São Cristóvão e, depois, Aracaju.

O oficial permaneceu hospitalizado por dez dias. Enquanto isso, mais nove náufragos do Araraquara chegaram às praias sergipanas: as passageiras Eunice Baumann e Alaíde Cavalcante, que perdera marido, três filhos pequenos e um irmão; o passageiro Caetano Moreira Falcão; e os tripulantes José Rufino dos Santos, José Alves Melo, José Correia Santos, Francisco José dos Santos, José Pedro da Costa e Maurício Vital.

* Enviado Espedial a Aracaju/SE.

Texto reproduzido do site folha.uol.com.br/fsp/mais

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